A superação da súmula 560 do STF e a nova perspectiva sobre o crime de contrabando e descaminho no Direito Penal Brasileiro

A superação da súmula 560 do STF e a nova perspectiva sobre o crime de contrabando e descaminho no Direito Penal Brasileiro

Após a superação da Súmula 560 do STF e de todas as discussões que se apresentaram, os Tribunais Superiores firmaram o entendimento de que o pagamento do tributo, ainda que efetivado antes do recebimento da denúncia, não tem o condão de extinguir a punibilidade do agente.

A súmula 560 do STF estabelecia que “A extinção de punibilidade, pelo pagamento do tributo devido, estende-se ao crime de contrabando ou descaminho, por força do art. 18, § 2º, do decreto-lei 157/1967.” Este entendimento refletia uma postura permissiva em relação à extinção da punibilidade para esses crimes econômicos mediante a regularização fiscal, promovendo uma resolução pragmática das infrações aduaneiras.

Historicamente, o decreto-lei 157/67 foi editado durante o regime militar, em um período de grande centralização do poder estatal e de políticas econômicas que visavam controlar o comércio exterior. A previsão de extinção de punibilidade pelo pagamento do tributo devido, incluindo os crimes de contrabando e descaminho, demonstrava um enfoque utilitarista que priorizava a arrecadação fiscal sobre a repressão penal.

Nesse ponto, vale abrirmos um parêntese para demonstrar o enquadramento típico dos delitos de contrabando e descaminho e o conceito de extinção da punibilidade.

O descaminho, definido pelo artigo 334 do Código Penal, refere-se à importação ou exportação de mercadorias de maneira fraudulenta, evitando o pagamento total ou parcial de impostos devidos. Isso pode incluir subfaturamento, declarações falsas sobre quantidade ou qualidade das mercadorias e outros artifícios para evitar o pagamento de tributos. Tal delito visa tutelar tanto os interesses arrecadatórios do Estado quanto a regularidade do comércio exterior e a proteção da indústria nacional.

Já o contrabando, previsto no artigo 334-A do Código Penal, envolve a importação ou exportação de mercadorias proibidas, como drogas ou produtos que violem normas de saúde pública e segurança nacional. Além de evasão fiscal, o contrabando afeta a segurança pública e a moralidade administrativa.

Por sua vez, a extinção da punibilidade é um instituto do Direito Penal que permite cessar os efeitos penais de um crime, desde que atendidas certas condições legais, como a prescrição, anistia, ou pagamento do tributo devido em crimes tributários. A aplicação desse instituto aos crimes de descaminho e contrabando foi alvo de intenso debate.

Guilherme de Souza Nucci assim a define:

Conceito de extinção da punibilidade: é o desaparecimento da pretensão punitiva ou executória do Estado, em razão de específicos obstáculos previstos em lei, por razões de política criminal. Inexiste fundamento de ordem técnica para justificar a causa de extinção da punibilidade; todas decorrem de vontade política do próprio Estado, por meio do Legislativo, de impedir a punição ao crime que seria imposta pelo Poder Judiciário.1

Pois bem, embora a extinção da punibilidade nos delitos de descaminho e contrabando, mediante o pagamento de tributo, fosse uma solução pragmática ante tais delitos, a Lei Federal 6.910/812 superou essa súmula.

Entretanto, após o início de vigência da aludida Lei que impossibilitou a extinção da punibilidade em razão do pagamento do tributo devido, sobreveio a Lei Federal 9.249/95 que, novamente, previu tal possibilidade, ao estabelecer em seu artigo 34: “Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 19903, e na Lei n. 4.729, de 14 de julho de 19654, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia”.

Com isso, iniciou-se novo questionamento acerca da extinção da punibilidade quanto ao delito de descaminho, mediante o recolhimento oportuno do tributo, sendo diversos os posicionamentos entre os doutrinadores e os Tribunais pátrios, os quais firmaram entendimento no sentido de que a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo antes do oferecimento da denúncia não se aplicaria ao crime de descaminho, fundamentando com a taxatividade do referido artigo 34, que faz menção expressa aos crimes contra a ordem tributária e sonegação fiscal, respectivamente. Além disso, sustenta-se que o bem jurídico tutelado no crime de descaminho, além de abranger o interesse da Fazenda Nacional em ver o tributo recolhido, protegeria também a Administração Pública no que diz respeito à incolumidade do regime de importação e exportação, especialmente no que concerne aos interesses da indústria nacional. Seria inaplicável, assim, a analogia, pois não haveria lacunas na lei e nem as situações referidas seriam semelhantes. Nessas situações, o máximo que se tem reconhecido é a diminuição da pena, nos termos do artigo 16 do Código Penal, considerando-se o pagamento do tributo como arrependimento posterior.

Vejamos o entendimento do doutrinador Rui Stoco:

“Conclua-se que, embora a Lei 9.249/95 tenha restaurado a possibilidade de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo apenas com relação aos crimes contra a ordem tributária, previstos na Lei 8.137/90, nada justifica, nem se encontra razão lógica ou jurídica, à luz do princípio constitucional da igualdade, que tal benefício não se estenda também ao autor do crime de descaminho, dada a sua natureza de delito contra a ordem tributária em que se objetiva impedir a importação e exportação de bens e produtos sem o pagamento dos impostos e taxas devidos”.5

Todavia, verifica-se que a resposta para cessar com tal desentendimento está estritamente relacionada à necessidade de constituição definitiva do crédito tributário, ponto este que não está contemplado no crime de descaminho.

Os nossos Tribunais Superiores (STF e STJ) têm compreendido que o delito em apreço possui natureza de crime formal e, portanto, não se exige efetivo prejuízo ao erário para a consumação; basta a ilusão de direito ou imposto. Em decorrência desse entendimento, a orientação dos Tribunais se dá na direção de que o esgotamento da via administrativa é dispensável.

O E. Superior Tribunal de Justiça (STJ) segue a mesma linha:

“No julgamento do HC 218.961/SP6, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento no sentido de que o crime de descaminho é de natureza formal e se aperfeiçoa mediante o não pagamento do imposto devido em razão da entrada de mercadoria no país, sendo prescindível o exaurimento da esfera administrativa com o lançamento do débito fiscal como condição para a persecução penal”.7

Dessa forma, como o STJ considera formal o crime de descaminho, o pagamento do tributo é irrelevante:

2. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça firmaram compreensão no sentido de que a consumação do crime de descaminho independe da constituição definitiva do crédito tributário, haja vista se tratar de crime formal, diversamente dos crimes tributários listados na Súmula Vinculante n. 24 do Pretório Excelso. 3. Cuidando-se de crime formal, mostra-se irrelevante o parcelamento e pagamento do tributo, não se inserindo, ademais, o crime de descaminho entre as hipóteses de extinção da punibilidade listadas na Lei n. 10.684/2003. De fato, referida lei se aplica apenas aos delitos de sonegação fiscal, apropriação indébita previdenciária e sonegação de contribuição previdenciária. Dessa forma, cuidando-se de crime de descaminho, não há se falar em extinção da punibilidade pelo pagamento.8

Portanto, após a superação da Súmula 560 do STF e de todas as discussões que se apresentaram, os Tribunais Superiores firmaram o entendimento de que o pagamento do tributo, ainda que efetivado antes do recebimento da denúncia, não tem o condão de extinguir a punibilidade do agente.

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1 Código Penal Comentado / Guilherme de Souza Nucci. – 19. ed. [2. Reimpr.] – Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 663.

2 Art 1º – O disposto no art. 2º da Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, e no art. 18, § 2º, do Decreto-lei nº 157, de 10 de fevereiro de 1967, não se aplica aos crimes de contrabando ou descaminho, em suas modalidades próprias ou equiparadas nos termos dos §§ 1º e 2º do art. 334 do Código Penal.

3 Lei que define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo

4 Lei que dispõe sobre o crime de sonegação fiscal

5 STOCO, Rui (Coord.); FRANCO, Alberto Silva (Coord.) (Orgs.). Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 7., rev. atual. e ampl.. SÃO PAULO: Revista dos Tribunais, 2001, p. 4.047/4.048

6 HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. WRIT NÃO CONHECIDO, POR SER ERRÔNEA A IMPETRAÇÃO ORIGINÁRIA EM SUBSTITUIÇÃO À VIA DE IMPUGNAÇÃO CABÍVEL, QUAL SEJA, O RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL. DESCAMINHO. CRIME FORMAL. DESNECESSIDADE DE CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE FLAGRANTE QUE, EVENTUALMENTE, ENSEJASSE A CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.

1. Na esteira dos precedentes atuais deste Superior Tribunal de Justiça, o writ não pode ser conhecido, por se tratar de errônea impetração originária de habeas corpus em substituição à via de impugnação cabível, qual seja, o recurso ordinário constitucional.

Contudo, em respeito ao fato de a impetração ter sido anterior à mudança do referido entendimento, é feita a análise da insurgência, a fim de verificar a eventual possibilidade de concessão da ordem de ofício.

2. O crime de descaminho se perfaz com o ato de iludir o pagamento de imposto devido pela entrada de mercadoria no pais. Não é necessária, assim, a apuração administrativo-fiscal do montante que deixou de ser recolhido para a configuração do delito. Trata-se, portanto, de crime formal, e não material, razão pela qual o resultado da conduta delituosa relacionada ao quantum do imposto devido não integra o tipo legal. Precedente da Quinta Turma do STJ e do STF.

3. A norma penal do art. 334 do Código Penal – elencada sob o Título XI: “Dos Crimes Contra a Administração Pública” – visa proteger, em primeiro plano, a integridade do sistema de controle de entrada e saída de mercadorias do país, como importante instrumento de política econômica. O agente que ilude esse controle aduaneiro para importar mercadorias, sem o pagamento dos impostos devidos – estes fixados, afinal, para regular e equilibrar o sistema econômico-financeiro do país – comete o crime de descaminho, independentemente da apuração administrativo-fiscal do valor do imposto sonegado.

4. O bem jurídico protegido pela norma em tela é mais do que o mero valor do imposto. Engloba a própria estabilidade das atividades comerciais dentro do país, refletindo na balança comercial entre o Brasil e outros países. O produto inserido no mercado brasileiro, fruto de descaminho, além de lesar o fisco, enseja o comércio ilegal, concorrendo, de forma desleal, com os produzidos no país, gerando uma série de prejuízos para a atividade empresarial brasileira.

5. Em suma: a configuração do crime de descaminho, por ser formal, independe da apuração administrativo-fiscal do valor do imposto iludido, embora este possa orientar a aplicação do princípio da insignificância quando se tratar de conduta isolada.

6. Habeas corpus não conhecido.

(HC n. 218.961/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 15/10/2013, DJe de 25/10/2013.)

7 RHC n. 47.893/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 14/2/2017, DJe de 17/2/2017.

8 HC n. 271.650/PE, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 3/3/2016, DJe de 9/3/2016

Por Marco J. Eugle Guimarães e Gabriela Franzini Daguer

Fonte: Migalhas

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