Hidrelétrica pode deixar rombo bilionário

Hidrelétrica pode deixar rombo bilionário

Mesmo sem gerar energia desde rompimento da barragem da Samarco, a hidrelétrica Risoleta Neves recebeu recursos pagos em parte pelos consumidores na conta de luz

O rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana (MG) deixou 19 mortos, destruição, consequências ambientais no rio Doce e pode ainda deixar uma conta bilionária para o consumidor de energia e para algumas empresas do setor elétrico.

Isso porque a hidrelétrica Risoleta Neves, administrada pelo Consórcio Candonga, foi devastada pela onda de lama e detritos, causando o total assoreamento do reservatório, inviabilizando a operação da usina. A planta tem 140 MW de potência, e o reservatório impediu que um volume ainda maior de rejeitos de mineração escoasse em direção à foz no Espírito Santo.

Desde novembro de 2015 sem gerar energia, a usina teve sua operação suspensa pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), até que a condição operativa fosse restabelecida. Em vez de o Consórcio Candonga pedir a reparação dos danos à Samarco, causadora da tragédia, o grupo moveu a uma ação contra a Aneel para anular os atos administrativos da agência.

O resultado foi que, por mais de cinco anos sem gerar nenhum quilowatt-hora de energia, a usina recebeu valores de compensação financeira do Mecanismo de Realocação de Energia (MRE) – um sistema de compartilhamento de riscos de escassez de chuvas entre hidrelétricas, que garante às usinas o recebimento de um percentual da energia gerada. Parte desses recursos são cobrados dos consumidores, através da conta de luz.

Fontes ligadas ao processo contaram, sob condição de anonimato, que a explicação pode estar na composição da cadeia societária do consórcio e da causadora do dano, a Samarco. A hidrelétrica pertence meio a meio à Aliança Energia e à Vale, mas a mineradora tem 55% da Aliança. Ou seja, a Vale é a principal acionista, com 77,5%. A Cemig detém a fatia restante da sociedade. Além disso, Vale é também uma das sócias da Samarco, junto com a BHP Billiton.

Em outubro de 2021, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu o recurso da Aneel e o MRE deixou de amargar os prejuízos impostos da usina fantasma. Segundo o relator, o ministro Humberto Martins, a Aneel indicou prejuízo superior a R$ 420 milhões para as usinas que compõem o MRE, sendo que 30% foi repassado aos consumidores cativos de energia elétrica.

Em comunicado, a mineradora Vale disse que meses antes, em julho de 2021, apresentou à Aneel um termo de compromisso para neutralizar os repasses financeiros em razão da perda de geração da usina Risoleta. A proposta previa o pagamento dos valores decorrentes da paralisação desde a catástrofe em Mariana (MG), em 5 de novembro de 2015, até dezembro de 2022. Os valores retroativos corrigidos, já repassados à usina, são estimados em R$ 781 milhões.

A Cemig acusa a Vale de não cumprir o acordo e diz que o consórcio figura como vítima do ocorrido em Mariana (MG). “A Vale não pagou o valor que se comprometeu no Comunicado ao Mercado. Cada parte do consórcio realizou o pagamento de sua cota, prejudicando a Aliança e indiretamente a Cemig, vítimas do evento”.

A Cemig ressalta que a Aliança, o Candonga e a Cemig são entidades distintas, porém vítimas do ilícito cometido por Vale, Samarco e BHP. “A transferência de pagamentos relativos aos prejuízos causados para sociedades de que fazem parte não se afigura correta. Dessa forma, a Cemig atua em face dessas empresas, interna e externamente (inclusive judicialmente), para que os prejuízos sejam ressarcidos pelo efetivo responsável”.

O Consórcio Candonga mantém o processo ativo no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) para ser recolocado no MRE. Procurado, o consórcio não respondeu porque quer receber os recursos do MRE, sendo que não pode gerar energia, e informou apenas que não comenta ações judiciais em andamento.

Juristas afirmam categoricamente que um consórcio não tem personalidade jurídica, ou seja, Candonga estaria agindo por determinação das controladoras para retornar ao MRE e ficar com o valor recebido. “Se Candonga ganhar o processo, quando transitar em julgado, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) vai recontabilizar tudo de novo em favor do consórcio. A depender do prazo, o valor corrigido será bilionário”, disse uma fonte.

A advogada especialista em direito societário, Sheila Shimada, entende que há uma questão moral. Por conta disso, o STJ identificou o conflito e retirou o Candonga do MRE. Shimada avalia que a probabilidade da decisão do STJ ser revertida é improvável.

“Permitir que o consórcio recebesse os valores da MRE através do sustento de outras hidrelétricas, beneficiando indiretamente a Vale, causadora dos danos, seria a mesma coisa que aprovar a sua conduta em Mariana (MG)”.

Procurada, a Vale disse em nota que “a ação anulatória foi ajuizada pelo Consórcio Candonga em desfavor da Aneel, não sendo a Vale parte diretamente envolvida na ação. A ação judicial ainda não teve decisão definitiva”.

A Samarco disse que executa as obras para reparação de danos no reservatório da usina, por meio de diversas ações, especialmente o desassoreamento na área de alagamento da hidrelétrica e a conclusão das obras e liberação para enchimento do reservatório está prevista para o final de 2022. A empresa, todavia, não disse quanto está investindo na recuperação.

É possível ainda que a hidrelétrica nunca mais volte a operar. Um executivo de alto escalão ligado ao processo contou ao Valor que a usina é irrecuperável e terá que ser desmontada. A mesma fonte disse que a Aliança está acionando judicialmente a Samarco.

Procurada, a Aliança disse que não se manifesta sobre as ações judiciais em andamento. A BHP não quis se pronunciar.